quinta-feira, 23 de julho de 2015

Em estado de graça



O supergrupo paulista e sua instrumentália: armas do bem
Essa história de ancestralidade que deixa algum tipo de marca em nosso caráter, tatuando nossa genética e nos impelindo cada vez mais fortalecidos para o futuro não é balela. Acredito. Somos um pouco aquilo que fomos. Sempre que ouço tambor tenho em mim células que dançam e despertam a alma. Somos um Brasil negro na cor e na dor do banzo. Um país que se miscigenou traz nessa característica tão intrínseca o melhor de nós. A aceitação disso nos faz melhores. Não a toa, algumas das manifestações e apoteoses musicais brasileiras mais bacanas e perenes vêm dessas intersecções. Meu sangue reconhece o samba como minha casa. Meu sangue se aconchega no batuque, como se tambores fossem sinfonias de ninar e neles me visse. O novo, cada vez fica evidente a cada som ouvido, vem do velho. Por isso, o que de velho tenho em mim se reconhece na quintessência sonora do Bixiga 70, supergrupo instrumental paulista que a cada disco enche nosso quarto de batucada ancestral miscigenada a outros sons e levadas modernas que faz nosso peito brasileiro se estufar de orgulho. III, o terceiro álbum desse grande grupo, é pra hipnotizar, um testemunho definitivo da grandeza dessa música de raiz tão poderosamente ramificadas em nós.

Muito se falou na imprensa do Bixiga 70. Pouco infelizmente se escutou nas rádios. O som dos caras corre por fora, como um cavalo azarão numa corrida cheia de pretensos e vistosos campeões. Um corcel que é puro sangue e que os olhos da maioria, vitimada por uma cegueira cultural imposta por um sistema maniqueísta e biafra, não consegue divisar. Desde Bixiga 70(2011) , primeiro álbum dos paulistas, a macumba foi feita. Bem feita. Um trabalho pesado, minuncioso, em nome de uma estupenda qualidade sonora que já se via em composições ecléticas que misturavam o batuque afro, o eletrônico, em doses reduzidas, e o jazz. Essa é a linha musical que escolheram e seguem, para o nosso bem, com católica fidelidade. Bicam o passado para fazer efervescer cadinhos sonoros que embasbacam qualquer um com sensibilidade mais aflorada, como em “Deixa a Gira Girar”, pérola presenteada pelos Tincoãs, em um vinil de 1973, e que o Bixiga resgatou no ótimo segundo disco do grupo. E incursionam no território das novidades com criações próprias que nada deixam a dever a mestres tão esquecidos. Ah, nossa memória capenga da afrobrasilidade. Somos devedores dessa música de raiz.

Ouça "Deixa a Gira Girar". É só se linkar:
https://www.youtube.com/embed/rYTlaMqrnVI


Som de jazz e candomblé, Brasil à flor de nossa pele
Em III, Décio 7 (bateria), Marcelo Dworecki (baixo), Cris Scabello (guitarra), Mauricio Fleury (teclado e guitarra), Rômulo Nardes e Gustávo Cék (percussão), Cuca Ferreira (sax barítono), Daniel Nogueira (sax tenor), Douglas Antunes (trombone) e Daniel Gralha (trompete) continuam mandando muito bem. Veja já na primeira música o sopro renovador e inventivo de “Ventania”, música que os pernambucanos do Nação Zumbi, que moram na mesma sintonia do Bixiga, adorariam ter feito. O instrumental consistente de cordas, metais e atabaques, do moderno e do ancestral, tão bem conjuminados é quase um estado de graça. E vem aquele toque de jazz orquestrado no momento certo e que ajuda a elevar o espírito. Esses paulistas danados(são todos paulistas? Fico devendo essa informação), que dominam com graça os instrumentos que tocam, vão da universalidade da música negra de raiz norte-americana ao som radical negro-brasileiro com uma versatilidade exemplar que fazem do disco uma bela dádiva para nossos ouvidos cansados de baboseiras musicais. E tudo vira, a meu ver, um exercício de brasilidade refinada como estamos pouco acostumados a ver, melhor, ouvir. É assim em “Niram”, que chama pra dança, pro terreiro, magicamente. Dançante, sim. Basta se deixar levar. Vai fugir da levada funkeada de “100% 13”? Besta é tu! Repare nas paradas mântricas da composição, com os metais rasgados em contraponto. Viagem? Pode ser, mas tente viajar também que vale a pena.


Capa do terceiro disca do Bixica: áfrica nao espírito
Bixiga 70 é um caso aparte na nossa música, como alguns outros grupos que buscam no instrumental, difícil arte, sua expressão. Se eles evocam a África é porque tem um pé lá. E não fogem disso, porque a inspiração é clara e larga. E o material que chafurdam nobremente também é rico. Talvez se mais grupos se apoiassem nessa mistura do africano com o jazz, com  o candomblé e outras vertentes afromusicais tivéssemos uma linha musical brasileira mais autêntica e renovadora. Estamos precisando, né? E aí ficam os testemunhais disso em composições robustas como “Di Dancer” e “Machado’, seqüência exterminadora do disco desses caras. E até em novas incursões, como “Lembe”, que lembra vagamente plagas árabes, o grupo acerta. Sou fã incondicional dos paulistas porque é música sincera e boa de ser ouvida, porque tocada com fervor e competência, e o que é mais bacana, arranjada coletivamente num processo laboratorial. Tudo com sentido e direção certos. Dessa forma, melhor do que falar a respeito é ouvir. Vá mergulhe em mais uma obra fabulosa do Bexiga 70, que mantem uma coerência musical e um amor pelo Brasil raros de ver.

Cotação: Ótimo

Vá, compre ou baixe o Cd sem demora: http://www.bixiga70.com.br/

domingo, 10 de maio de 2015

Fogo na roupa



Da luz, provocante na capa de seu ótimo segundo trabalho
Às vezes passamos ao largo de experiências musicais, talvez por preguiça ou preconceito, quiçá por essa cegueira que nos faz neandertais e a qual chamamos comumente de ignorância. Talvez seja assim com tudo o mais que nos cerca: somos de nascimento antenas de vida e, indo contra a maré, deixamos em várias ocasiões escapar aqueles sopros de conhecimento que faria da gente seres mais vivos e melhores, ou pelo menos, um pouco mais avançados. E foi assim com o RAP em minha vida. Distanciando-me de uma resistência idiota, aos poucos percebi que músicos iluminados como Sabotage, Criolo e Emicida conheciam os atalhos pra chegar ao coração de milhares de pessoas ávidas por mensagens que fizessem sentido e dessem sentido à sua existência. Música de periferia sim, talvez por isso mesmo de uma sinceridade espantosa e, também por isso, altamente recomendável para os círculos off morros e comunidades. E tava lá o Brasil escancarado em um som de raiz negra que aos poucos começou a se diversificar, abrasileirando-se e absorvendo outros batuques que enriqueceu o gênero. E gerando novos representantes tufados de atitude e talento, como é o caso de Lurdez da Luz, que lançou em dois mil e catorze, o excelente e lascivo Gana pelo Bang (2014).


<iframe width="480" height="270" src="https://www.youtube.com/embed/yHHl20_mpfM" frameborder="0" allowFullScreen=""></iframe>


Conheci a paulistana Lurdez da Luz com seu bacana EP de 2010, uma espécie de rascunho das boas intenções dessa rapper. Tinha já um tanto do desbocamento e da verborragia que chamaria atenção da crítica e que se alumbraria corajosamente também em trabalhos de colegas da Luz, como Karol Conká na pulsante estréia Batuk Freak (2013). Do primeiro trabalho para esse Gana pelo Bang, a artista evoluiu, ganhou consistência e ainda mais ousadia, que o diga o nome provocativo do álbum. Mas, que não nos enganemos pela sacada de duplo sentido, ou seria sacanagem, do título. O CD não é nem de longe um exercício de ilações ou malhações sexuais, com bundinhas descendo e subindo como incitam muitos funkeiros trogloditas em suas pornográficas composições. O rap abrasivo de Lurdez é de respeito. E traz consigo o desejo de provocar o desejo de querer mais, como sexo bem feito. Que tal uma declaração de amor franca, direta e abusadamente apaixonada a ponta da moça impedir que o amado não saia do recinto sem levar pelo menos um beijinho? É assim em “Beijinho”, música que dá o tom anárquico do CD e suas inconfidências musicais. Pérola pop boazinha demais para tocar em rádio. E bem que a moça merecia desfilar por aí nas FMs populares.


Disco da rapper é marcado pela maturidade da paulistana
Essa moça que veio de uma escola de boas rimas e sólida estrutura, ao lado dos manos do Mamelo Sound System, revolve sua experiência musical para falar de sexo, relacionamentos pessoais e a realidade da periferia com feliz maturidade. E discorre o discurso em músicas bem temperadas e letras fervilhantes. Em "DP", o papo é reto e desliza certeiro em melodia de batuque pulsante: “Olhe o quanto a gente já viveu/Já teve no ceu/ Baby, eu sou a sua praia/Chega dessa nóia/Não quero outro cara/ Só sei que quando a gente encosta, se enrosca é fire”. Fogo que se alastra por todos os lados, incessante como incêndio nos tanques de petróleo na zona de Alemoa em Santos. No corpo, nas ruas, na cabeça das pessoas reativas ao momento político e aos desvios da alma. Como não pensar nas manifestações que varreram o pais em 2014 e que parece ecoar na letra de “Fervo”: “Temperatura elevada, mais de um milhão nas calçadas(...)Meu pensamento a milhão e os que estão aqui também tão(...)/As ruas tão fervendo/O clima tá fervendo/as mentes tão fervendo”. É como Da Luz avisa logo, sem cerimônia, na hiperativa e suingada “Ping Pong”: “Meu RAP é real, não é de songa monga”.


E haja incêndio. Mas, se tem fogo pestilento que não se apaga, bem que vale a lembrança para que as pessoas o mantenha pelo menos em modo brando. Você se contenta com um belo cristal ou faz guerra pelo diamante lapidado? O recado é passado na politizada “Gana”: “Confunde com ganância que a idéia não é essa/Paraíso na suíça é só flor na conta corrente/ Império gana/ se ergue, no caso, da soja ou da cana”, canta Lurdez da Luz com sua voz afinada e anteparo de batuque e metais pra lá de dançantes. É discurso típico de quem imergiu numa realidade feita de sobras e contravenções. “Que eu sou da pior quebrada do mundaréu/Eu vou que vou/ Melhor ser suspeita do que ser réu/Brasil é gol de placa”, ironiza a rapper em “Naija” seu melhor e mais sombrio momento de Gana pelo Bang. Nesse aturdimento causado pelas diferenças sociais e isolamento econômico, no RAP de raiz “Poder”, o discurso se conecta com a periferia indignada na pergunta assentimento: “Pra que poder, vou te dizer/ Pra ser quem sou, vou te dizer/ Pra ser quem sou e quero ser/ Quero poder, não sou pra ter/ ir e vir, poder acontecer”. Talvez querendo dizer que gol de placa teremos mesmo quando os invisíveis muros desse Brasil caírem por terra e zona norte e zona sul, centro e periferia puderem conviver irmanamente. 

Da luz decreta: é música descarada para bailes e afins
 E todas essas letras, mil palavrinhas cortantes cantadas com endereço certo em Gana pelo Bang, estão super bem acompanhadas por músicos competentes e os arranjos tecno-brasileiros produzidos e galvanizados pelos afiados Leo Grijó, Leo Justi e Nave. O RAP de Lurdez da Luz é tolerante, generoso, permite engalfinhamentos, casamentos ostentatórios com o funk, o batuque, a macumba e o eletrônico. Suruba finíssima que permite crossovers até com a música indiana como em “Mente Aê”, que lembra o batidão de M.I.A, rapper do Sri Lanka, conhecida mundialmente pela fantástica mistureba musical que promove.Mistura de responsa, diga-se de passagem, e que nos leva invariavelmente para a pista. Descarada música para bailes e afins, pra se pensar e dançar, com essência eletrônica, black, negríssima e pulsante como em “Mama África”, uma das melhores do disco, com sua metaleira e coral feminino escaldantes: “Mama só que dançar/Isso é só frisson/Sente o fluxo, quero ver você mexer”. Tambores e suingue à serviço de letras à serviço do bem e da consciência. Gana pelo Bang é álbum valoroso que coloca Lurdez da Luz no panteão dos rappers nacionais e deixa todos nós ouvintes atônitos. É, a música, definitivamente tem poder. 

Cotação: ótimo

Vai lá e baixe: http://www.lurdezdaluz.com/

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Renda-se a este presente



Abra os olhos: chegou o Chá de Boldo pra curar as mazelas
Diletantismo não é um substantivo qualquer. É daqueles porretas. Adoro o seu significado porque nele está entranhado aquela força vital que nos coloca acima da superfície das coisas. E como coisas são só coisas, como diria o grande paraibano Chico César, valorizar o que não é apenas o concreto, mas o abstrato da vida é uma arte deliciosa que nos faz mais humanos. Por isso acho um belo acerto o que Michaelis diz em seu dicionário sobre o tal substantivo: “filosofia de vida que coloca, como condição prévia à ação, o prazer e o capricho pessoal.” Essa definição somada à outra que diz que o diletante é aquele “entendedor ou apaixonado de uma arte ou a ela se dedica por gosto, especialmente à música”. Ou seja, sejamos preciosos e busquemos o prazer naquilo que dedicamos com paixão e com espiritualidade, colocando aqui principalmente a nossa assinatura que é única e intransferível. E essa é a grande essência de Presente(2015), o terceiro e efervescente trabalho do coletivo Trupe Chá de Boldo.



Eu que sempre fui a favor do diletantismo, vejo nessa busca caprichosa de uma assinatura própria, o autoral no seu sentido mais lato e não apenas no discurso ôco do roqueiro de garagem, uma prática altamente saudável e louvável. Até porque essa história de “a muriçoca soca, soca, soca”, hit de verão do litoral nordestino e além que infernizou nossos ouvidos na transição de 2014 para 2015 é de uma indigência apocalíptica. Presente é um antídoto para essa pobreza musical, que existe até pela falta de outras referências musicais e que insiste em arrastar a massa atrás como um trio elétrico frenético nas ruas de Salvador. A Trupe Chá de Boldo vinha num exercício experimental, fruto de um trabalho laboriosamente coletivo, desde Bárbaro(2010), aprofundado com louvor em Nave Manha(2012). Nas letras manhosas e nas melodias sinuosas impregnadas pelo espírito de cada um dos 13 (isso mesmo, 13!) integrantes dessa big band paulista. E o que é melhor, 13 músicos com estofo musical para enriquecer as composições de um álbum que prima pela diversidade de ritmos e referências.


Na capade Presente: os treze da banda em surreal formação
Gustavo Galo, Ciça Góes, Felipe Botelho, Rayraí Galvão, Gustavo Cabelo, Julia Valiengo, Guto Nogueira, Pedro Gongom Manesco, Leila Pereira, Marcos Grinspum Ferraz, Rafael Werblowsky, Remi Chatain e Tomás Bastos, a Trupe faz um som que muitas vezes desrespeita o arrumadinho. Lembram, de forma menos radical, outros diletantes do universo pensante paulistano que perpetraram, na década de 80, o impagável grupo Rumo, com seu canto falado, vide Luiz Tati, Ná Ozzetti e Gal Oppido entre outros marginais entre marginais(desculpem o rótulo), professores de alguns dos integrantes da big band. Deitados em uma cama sonora de arranjos sofisticados, um dos grande trunfos do disco, a turma do Chá de Boldo desarruma os lençóis do trivial com melodiais de ritmo quebrado, como em “Fogo, Fogo”, que se incendeia lá pelo meio em brincadeiras atonais, ou na atmosférica “Moremáximo”, em que jogam com a riqueza e sonoridade de nosso léxico entrelaçado com a língua de Shakespeare num beijo de língua: “O amor é o máximo/I want more/o amor é um maço/I want more/Mormaço é pouco/ I want more/Amor”. Humberto de Campos adoraria. 

E tem ainda essa riqueza de ritmos que foge do neo-psicodelismo, como já tentaram enquadrar o som dessa trupe afogueada. Treze músicos com liberdade criativa para espargir seus gostos e tesões musicais é muito mais do que isso. Como assumem sintomaticamente na composição “Uma Banda”: “Uma banda grande é demais/não cabe num elevador/ não cabe num camarim/Não cabe num estúdio/Não cabe nos Jardins/não cabe assim”. Não cabe em definições nem em cabeças estreitas. O bom mesmo é abrir a mente e se deixar levar pelo presente musical oferecido. Abra o pacote e se refestele. Presente é rock, é folk, é jazzy, é afoxé, é também psicodelia, é mistura afortunada de batuques e metais, é, principalmente, uma suingada banda brasileira pela inteligência com que regurgita tantas influências. “Cabe só onde tem tesão/uma banda grande é demais”, define o grupo da melhor e mais objetiva maneira possível.

Por isso, a manha pra se ouvir Presente é estar preparado para o que der e vier. E isso é puro lucro, pode ter certeza. Na audição, leve as letras inteligentes consigo, aconselho. A manha é não se incomodar com a estranheza sonora e impactante de “Jovem Tirano Príncipe Besta”, assinada por um compositor de fora da banda, o maranhense Negro Léo, de bela e malemolente melodia, em contraponto ao texto feroz.  É se adequar a acachapante confidência de “Aos meus amigos”, incluindo a sintonia sentimental instigada pela letra: “Salve o amor, salve a paixão/ Salve o cantar de um coração/ Eu sei que mesmo sem saber, um dia eu vou voltar a ver”. É se acomodar, sem medo de ser feliz, ao bom humor exposto visceralmente em duas ótimas canções que nos levam à colocação feita no início do texto. Na anti-ostentatória “Esse não é o meu tesão”, onde tiram onda inclusive da sonoridade funkeira carioca, “Eu não sou o seu tesouro/Eu não sou o seu milhão/Eu não sou seu caviar/Eu não vou pro seu carrão”. E na definitiva “Diacho”, na qual curtem com a cara dos manés de shopping que babam por grifes: “Diacho, pra que tanto Dior/Pra que tanto Armani no armário” pra sugerir depois: “Se o melhor da vida a gente faz sem renda/Se renda ao calor, se renda”. Afinal, como dizia o grande paraibano, coisas são só coisas. Enfim, se renda ao diletantismo desse presente do Chá de Boldo.

Cotação: Ótimo

Baixe o disco em www.trupechadeboldo.com 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Fortaleza de pedras ásperas



O Cidadão Instigado retorna cada vez mais autoral e intenso
Quando deixei Fortaleza no início dos anos 80, via a cidade grande com olhos miúdos. De guardador de sonhos. Olhos ainda inocentes resguardados pelo manto generoso das amizades, pelo calor da família e pela utopia adolescente de ser o cara mais feliz do mundo dali por diante. A Praia do Futuro, aquela na qual me deitava de cara pro sol quarando, besuntado em óleo de avião(bronzeador popular na época), era então nostalgicamente a do futuro. E tudo o mais parecia algo que, pensei ludicamente, nunca perderia quando um dia retornasse. E a longa viagem atrás de minha formação humana e profissional, que me tornou um sujeito melhor, pelo menos um pouco melhor, acredito, me fez ver, anos depois, que a cidade grande transmudou-se feroz, ameaçadora, diante dos meus olhos que também se agigantaram. 


Vi esse susto e desencanto refletido na canção "Fortaleza”, que dá nome ao mais recente trabalho dos cearenses do Cidadão Instigado, nessa visão crua exposta num álbum com a mesma incrível e fascinante carga autoral, já esperada em se tratando de Catatau e sua trupe, que faz desse lançamento uma obra a se comemorar. A cidade do garoto e de seus amigos, que cresceram no bairro classe média da Varjota foi descaracterizada pelo crescimento desenfreado, que cavalgou na multiplicação de shoppings e arranha-céus que esconderam a visão do mar e fizeram sombra nas anuviadas cabeças dos cidadãos. “A Elite foi pros prédios e o povo sem perceber que a Fortaleza bela ninguém mais podia ver/Minha Fortaleza réia o que fizeram com você?”, canta Catatau em seu misto alucinado de repente e rock.

Capa do novo disco da banda cearense: tijolos em desordem
A percepção quase pueril e objetiva do cantor e compositor, essa vontade diáfana feito sonho de reencontrar o passado no presente, essa nostalgia guia o leme que nos faz marolar no mundo árido do Cidadão Instigado. A aridez, a estranheza do som vem de uma leitura personalíssima da vida e da música, de versos quase concretistas, que nos remete a um tempo em que o artista ousava criar sem amarras, em que filosofar era um exercício tão corrente quanto vão, em que os músicos viajavam na psicodelia sem qualquer culpa buscando acordes etéreos. Tem ecos claros dos anos 70 em Fortaleza, daquele período em que a cidade mirava o mar num diálogo solene, aberto e não truncado. Daquele tempo em que o rock em sua vertente progressiva conquistava mentes e corações, como os dos então garotos Catatau, Regis Damasceno, Dustan Gallas, Clayton Martin e Rian Batista.

O discurso abusado de Fortaleza que devaneia em versos impertinentes baila harmonicamente com o rock, com solos e riffs de guitarras com a mesma valorização que era dada a esses instrumentos pelas lendas Led Zeppelin, Pink Floyd, Procol Harum, Black Sabbath e tantos outros viajandões que não saiam das vitrolas dos cidadãos instigados. É como um álbum feito nos anos 70, mas com arremate desse louco século XXI. Essa pulsante nostalgia fica clara em composições como “Besouros e Borboletas”, com seu viés psicodélico e guitarra cortante, tocada por extrema competência pelo sempre iluminado Catatau, autor de quase todas as canções do álbum. Os longos solos de cordas, encaixados em arranjos bem trabalhados, são belos respiros instrumentais para os versos cheios de mistério da música. Mesma química que catapulta “Green Card” como uma das melhores do CD. “Vejo as pessoas espalhadas pelo muro. Seus pés de tijolos dificultam seus impulsos. Cenas feitas de silêncio e ódio”, canta de seu jeito único o irrequieto Catatau.

Se em O ciclo da dê.cadência (2002), O Método Túfo de Experiências (2005) e UHUUU! (2009), trabalhos anteriores do Cidadão Instigado, os cearenses já perseguiam um som próprio e intransferível, dessa vez, em Fortaleza, eles exageraram. Sem perder o tom e a magia. Deixaram um pouco de lado os timbres eletrônicos que pontuavam aqui e ali as melodias e se agarraram ao rock da maneira mais visceral possível. O riff de “Ficcão Científica” é uma jóia que se lapida a cada escutada. O peso e a batida de “Quando a Máscara Cai”, pegando carona no nome da banda, instiga os ouvidos com seu frescor e referência a um velho personagem criado pela banda no EP de 1998, o Zé Doidim, que no Ceará, pra quem não sabe, é como chamamos aqueles sem nocão que batem de cara com a vida sem medo das consequências.

“Quando a Máscara Cai”, traz ainda outra característica alentadora de Fortaleza, o disco, a mudança inesperada de ritmo, que faz do álbum uma gangorra de emoções e surpresas. Até naquelas canções, que parecem ter saído de um repertório brega, lado que Catatau e seus parceiros assumem sem vergonha,  e não inspirariam viradas bruscas, caso das baladas “Dizem que sou Louco por Você” e “Os Viajantes”, essa mudança de sonoridade dentro da música acontece arrebatadora. Difícil, enfim, rotular, definir um som que escapa do modismo, do lugar comum e que consegue se revolver num turbilhão criativo que só uma mente lúcida e lúdica como a de Catatau e os meninos instigados poderia construir. Não espere flores, nem a mesmice. A Fortaleza do Cidadão Instigado é uma construção de pedras ásperas, de arquitetura ousada e repleta de calabouços e quartos onde moram seres pensantes, formuladores de sentimentos contraditórios e pulsantes. Como uma Fortaleza que não existe mais e que hoje só vive na cabeça de um menino que na verdade nunca abandonou seus olhos sonhadores.

Cotação: Ótimo

Download do disco em: www.cidadaoinstigado.com.br

Leia também em: www.todoouvido.blogspot.com


Gasolina na monotonia

O fogo é um elemento vivo, hipnótico e, fundamentalmente, poderoso. Como um deus dançarino que carrega em sua coreografia desordenada o dom...