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Da luz, provocante na capa de seu ótimo segundo trabalho |
Às vezes passamos ao largo de experiências musicais, talvez
por preguiça ou preconceito, quiçá por essa cegueira que nos faz neandertais e a
qual chamamos comumente de ignorância. Talvez seja assim com tudo o mais que
nos cerca: somos de nascimento antenas de vida e, indo contra a maré, deixamos
em várias ocasiões escapar aqueles sopros de conhecimento que faria da gente
seres mais vivos e melhores, ou pelo menos, um pouco mais avançados. E foi
assim com o RAP em minha vida. Distanciando-me de uma resistência idiota, aos
poucos percebi que músicos iluminados como Sabotage, Criolo e Emicida
conheciam os atalhos pra chegar ao coração de milhares de pessoas ávidas por
mensagens que fizessem sentido e dessem sentido à sua existência. Música de
periferia sim, talvez por isso mesmo de uma sinceridade espantosa e, também por
isso, altamente recomendável para os círculos off morros e comunidades. E tava
lá o Brasil escancarado em um som de raiz negra que aos poucos começou a se
diversificar, abrasileirando-se e absorvendo outros batuques que enriqueceu o
gênero. E gerando novos representantes tufados de atitude e talento, como é o
caso de Lurdez da Luz, que lançou em dois mil e catorze, o excelente e lascivo Gana pelo Bang (2014).
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Conheci a paulistana Lurdez da Luz com seu bacana EP de
2010, uma espécie de rascunho das boas intenções dessa rapper. Tinha
já um tanto do desbocamento e da verborragia que chamaria atenção da crítica e
que se alumbraria corajosamente também em trabalhos de colegas da Luz, como
Karol Conká na pulsante estréia Batuk Freak (2013). Do primeiro trabalho para
esse Gana pelo Bang, a artista evoluiu, ganhou consistência e ainda mais
ousadia, que o diga o nome provocativo do álbum. Mas, que não nos enganemos
pela sacada de duplo sentido, ou seria sacanagem, do título. O CD não é nem de
longe um exercício de ilações ou malhações sexuais, com bundinhas descendo e
subindo como incitam muitos funkeiros trogloditas em suas pornográficas
composições. O rap abrasivo de Lurdez é de respeito. E traz consigo o desejo
de provocar o desejo de querer mais, como sexo bem feito. Que tal uma
declaração de amor franca, direta e abusadamente apaixonada a ponta da moça
impedir que o amado não saia do recinto sem levar pelo menos um beijinho? É
assim em “Beijinho”, música que dá o tom anárquico do CD e suas inconfidências
musicais. Pérola pop boazinha demais para tocar em rádio. E bem que a moça
merecia desfilar por aí nas FMs populares.
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Disco da rapper é marcado pela maturidade da paulistana |
Essa moça que veio de uma escola de boas rimas e sólida
estrutura, ao lado dos manos do Mamelo Sound System, revolve sua experiência
musical para falar de sexo, relacionamentos pessoais e a realidade da periferia
com feliz maturidade. E discorre o discurso em músicas bem temperadas e letras
fervilhantes. Em "DP", o papo é reto e desliza certeiro em melodia de batuque
pulsante: “Olhe o quanto a gente já viveu/Já teve no ceu/ Baby, eu sou a sua
praia/Chega dessa nóia/Não quero outro cara/ Só sei que quando a gente encosta,
se enrosca é fire”. Fogo que se
alastra por todos os lados, incessante como incêndio nos tanques de petróleo na
zona de Alemoa em Santos. No corpo, nas ruas, na cabeça das pessoas reativas ao
momento político e aos desvios da alma. Como não pensar nas manifestações que
varreram o pais em 2014 e que parece ecoar na letra de “Fervo”: “Temperatura
elevada, mais de um milhão nas calçadas(...)Meu pensamento a milhão e os que
estão aqui também tão(...)/As ruas tão fervendo/O clima tá fervendo/as mentes
tão fervendo”. É como Da Luz avisa logo, sem cerimônia, na hiperativa e
suingada “Ping Pong”: “Meu RAP é real, não é de songa monga”.
E haja incêndio. Mas, se tem fogo pestilento que não se apaga, bem que
vale a lembrança para que as pessoas o mantenha pelo menos em modo brando. Você
se contenta com um belo cristal ou faz guerra pelo diamante lapidado? O recado
é passado na politizada “Gana”: “Confunde com ganância que a idéia não é
essa/Paraíso na suíça é só flor na conta corrente/ Império gana/ se ergue, no
caso, da soja ou da cana”, canta Lurdez da Luz com sua voz afinada e anteparo
de batuque e metais pra lá de dançantes. É discurso típico de quem imergiu numa
realidade feita de sobras e contravenções. “Que eu sou da pior quebrada do
mundaréu/Eu vou que vou/ Melhor ser suspeita do que ser réu/Brasil é gol de
placa”, ironiza a rapper em “Naija” seu melhor e mais sombrio momento de Gana pelo Bang. Nesse aturdimento
causado pelas diferenças sociais e isolamento econômico, no RAP de raiz
“Poder”, o discurso se conecta com a periferia indignada na pergunta
assentimento: “Pra que poder, vou te dizer/ Pra ser quem sou, vou te dizer/ Pra
ser quem sou e quero ser/ Quero poder, não sou pra ter/ ir e vir, poder
acontecer”. Talvez querendo dizer que gol de placa teremos mesmo quando os
invisíveis muros desse Brasil caírem por terra e zona norte e zona sul, centro
e periferia puderem conviver irmanamente.
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Da luz decreta: é música descarada para bailes e afins |
E todas essas letras, mil palavrinhas cortantes cantadas com
endereço certo em Gana pelo Bang, estão super bem acompanhadas por músicos
competentes e os arranjos tecno-brasileiros produzidos e galvanizados pelos
afiados Leo Grijó, Leo Justi e Nave. O RAP de Lurdez da Luz é tolerante,
generoso, permite engalfinhamentos, casamentos ostentatórios com o funk, o
batuque, a macumba e o eletrônico. Suruba finíssima que permite crossovers até
com a música indiana como em “Mente Aê”, que lembra o batidão de M.I.A, rapper do Sri Lanka, conhecida mundialmente pela fantástica mistureba musical que
promove.Mistura de responsa, diga-se de passagem, e que nos leva invariavelmente
para a pista. Descarada música para bailes e afins, pra se pensar e dançar, com essência eletrônica, black, negríssima e pulsante como em “Mama África”, uma
das melhores do disco, com sua metaleira e coral feminino escaldantes: “Mama só
que dançar/Isso é só frisson/Sente o fluxo, quero ver você mexer”. Tambores e
suingue à serviço de letras à serviço do bem e da consciência. Gana pelo Bang é
álbum valoroso que coloca Lurdez da Luz no panteão dos rappers nacionais e
deixa todos nós ouvintes atônitos. É, a música, definitivamente tem poder.
Cotação: ótimo
Vai lá e baixe: http://www.lurdezdaluz.com/
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