sexta-feira, 18 de março de 2016

Dos discos de 2015 que ouvi em 2016 ou Difícil é sair ileso daqui


O sergipano e sua música: "Só não pode sair ileso daqui"
Engajamento é a palavra da vez em terras brasileiras. Mas, é fato: precisamos realmente estar engajados com algo. Nem que seja com a vida. E se essa nos cobra um posicionamento em função de uma conjuntura extrema, devemos responde-la, mostrar postura e se revelar. Porque passividade diante daquilo que nos afeta tão profundamente é descaso com aquilo que nos rodeia, com nossa família, nossos amigos, com quem amamos, conosco mesmo. É perda de identidade. Opinião é algo que molda a gente, que faz uma comunidade, um país mais senhor de si próprio. A presidenta que se expõe ao julgamento público, o partido que se torna alvo, uma oposição que faz estardalhaço, tem que ter, após uma análise fria de tudo que os colocou num único saco, um engajamento seu. Mas, sem socos e balas, claro. Porque tudo isso tem a ver com você.  E é isso que nos faz melhores. Debata, entenda os argumentos e tenha, principalmente, os seus muito bem fundamentados para que você não seja massa de manobra e sim elemento de transformação. E o que isso tem a ver com o álbum Enquanto Espera(2015), do sergipano Alex Sant’Anna? É que esse rapaz, nem sei se ele é pro ou contra nossa presidente, com certeza tem postura, engajamento com ótimas idéias que se transfiguram em música. E das boas.

Veja o vídeo de “Cansaço”:


Não como um Chico Buarque, que rasgava o verbo para, nas entrelinhas da poesia, falar da dor de uma nação dilacerada pela ditadura. Não como um Geraldo Vandré que rasgava a carne pra enfrentar com suas letras, de peito aberto, aquele mesmo regime militarista, medonho e cruel. Afinal, o Brasil é outro, se apascentou, se acomodou nesses anos estáveis, precisando de um desfibrilador pra acordar o coração dessa população que parece ter perdido a fibra política, o pulsar da consciência coletiva. O engajamento de Alex Sant’Anna, que desde 2004 não gravava um álbum cheio, é com a atitude diante da vida, é com a provocação. Essa música provocativa chama para o movimento, para a ação: “Pode até sangrar, tem que arder/Pode aliviar, tem que arrepiar/Tem que tirar os pés do chão/Tem que acordar pra querer cantar o refrão(...)/Só não pode sair ileso daqui”, canta ele na superbacana “Ileso”. Fazer música do bem, que nos incite a pensar, ou, pelo menos, repensar como vivemos, é fazer política. A sua maneira e com muita grooveria, esse cara, com suas composições de letras fortes e engajadas chama pra luta. E, o que é ainda melhor, com talento e musicalidade a flor da pele.

O sergipano Alex Sant'Anna mostra suas poderosas armas
Numa leitura paralela ao momento político conturbado que nós brasileiros vivemos, no meio dessas manifestações com a cara e cheiro da elite, Alex Sant´Anna seria o cara que vem na contramão, o que se mostra. E aí ele se joga de corpo inteiro, sem medo, se engaja naquilo que canta com sua voz direta, grave, com peso, arranjos e medidas certos. Seja na crítica a uma certa passividade, meio típico de nossa alma tupiniquim, que deixa a alma em suspensão na suingada “Enquanto Espera”(“Espera pra nascer/Espera pra falar/Espera entender/Espera levantar/Espera envelhecer/Espera suportar/Espera entender/Espera explicar/Quem vai chegando vai ficando atrás.”), alfinetada que se repete no reggae malandro de “Tô Engolindo Sapo” (“Tô engolindo sapo/Tô engolindo sapo/Não vejo a hora de estourar/Esse nó na garganta vai desatar.”), seja na canção do amor demais, em “O Dono da Dor”, com uma aguda sensibilidade (“Se ferida aberta do peito cai o sal da saudade. Arde!/Este ardor não tem quem dê jeito/Só o tempo pra fazer o milagre”), tudo é feito com entrega, com “roubando uma palavra da música anterior”, com muito ardor.

Essa entrega é definitiva, letra e música passionais derramadas por canções bem dosadas, de melodias que ficam tatuadas na memória. É com sangue quente que Sant´Anna, que já dividiu o palco com outros inquietos, como Tom Zé, Wado e Mombojó, encarna o homem se debatendo para se manter aceso, em “Culpa”, uma das melhores composições do disco, um rock de melodia que vai num crescendo agoniado, como rastilho de pólvora, com seu baixo e guitarra incendiários: “Deve haver uma saída(...) O homem que se preza anda/Não se ajoelha ainda/Não se entrega, insiste”. E é com essa fúria que volta à tona, depois do mergulho do fim do relacionamento, na bela metáfora que é “Verniz”: “Gastou, gastou o verniz do nosso amor”, canta Alex encarniçado, outro rock ainda mais pulsante. Essas duas canções chama atenção ainda para os bons arranjos, comandados por Leo Airplane. E há ainda espaço em Enquanto Espera para pequenas preciosidades, músicas despretensiosas de sabor pop como a bem humorada “Cansado”, de espírito buliçoso, e a tropicalista “Coceira”, uma marcha carnavalesca recheada de ironia pra ser cantada em rodas de amigos: “Guardei uma coceira nas costas/Pra quando você chegar/Na geladeira uma cerveja gelada/Pra quando você chegar/Pra você não ficar chateada/Quando você chegar. Enquanto esse dia não chega, eu vou cantar”.

Enquanto Espera é assim pois, um disco de inconformismo com dias de marasmo, de engajamento com a proposta de se fazer boa música, decente e honesta. Quase todo escritinho por Alex Sant’Anna, são poucas as parcerias, o álbum, o segundo de sua carreira, depois da distante estréia de Aplausos Mudos, Vaias Amplificadas(2004) é um desses doces e inesperados presentes. Desses que fazem a gente esperar pelo próximo trabalho com a sensação de que haveremos de ser acalentados mais uma vez pelo bom gosto e boas idéias do sergipano. E enquanto esse dia não chegar, vai sempre valer a pena uma revisita a essa obra que se apresenta marcante com sua inteireza e tapas na cara. Quem tem ouvido pra escutar, que escute, porque essa novidade, no rumo que tomou, veio para ficar.

Cotação: Ótimo

Faça o download de Enquanto Espera e do disco anterior do artista em:

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