sexta-feira, 8 de abril de 2016

Com açucar e com afeto

O maranhense Bruno Batista faz de Bagaça seu disco de virada
E se de repente a gente se enchesse de gentileza, como copo com água cheinho, beirandinho a boca, pra matar uma desenfreada sede. E se essa gentileza fosse regra inquebrantável a ponto de se metamorfosear, por ordem natural da vida, na mais contagiante delicadeza para todos nela se deitar. Quem sabe o mundo acordasse dançando valsa e toda a raiva e fúria contida nas entranhas dos desregrados, pobres diabos, se desmanchassem em fumaça que o vento levaria num sopro derradeiro. Um dia vi essa delicadeza passeando altiva, em veste aos frangalhos, nas ruas da São Luís colonial. Um homem sem moeda no bolso e com ouro no coração amparando uma senhora que caíra, na cama de gato que a velhice as vezes arma, se espalhando caudalosa ao lado dos pertences vomitados pela bolsa. Tostões e cédulas. Batom, fotos, lenços e bibelôs juntados, um a um, pelo homem sem posse e devolvidos com um sorriso entremeado entre parcos dentes. A mulher antes assustada pela figura voluntariosa sem moeda no bolso e coração de ouro, diante de quem o preconceito logo cria armadura, desarmada pelo gesto gentil, reagiu abrindo o branco irretocável de sua dentadura alinhada. E os dois seguiram, ele vestido de dourado, em direções diferentes, pelas ruas do centro histórico da capital maranhense com a sensação - imaginei no calor da tocante cena - de que a delicadeza é um doce remédio para a frieza desses dias. Revi essa delicadeza, soprada pelo Maranhão, e talvez por isso mesmo tenha recordado dela mas muito e, coincidentemente, pelo o que a música me afagou, no álbum Bagaça, de um artista chamado Bruno Batista.

Ouça "Nigrinha":

https://www.youtube.com/watch?v=UNccTNom_8Y

De Bruno já havia ouvido, em minhas andanças por uma então castigada São Luís, o primeiro e revelador álbum de 2004, que leva o nome do artista. O trabalho deixou ecos em mim e por dias se fez presente em noites rasantes na minha vitrolinha. Mas o tempo, cruel na maquinação em nos separar daquilo que nos faz bem, e tudo o mais que a vida, essa doidivanas, se agiganta e nos impele a uma desembestada correria, atropelaram essa relação que, enfim, mal começara. E fim. E perdi Bruno de vista até reencontra-lo, num momento de delicadeza, nesse seu Bagaça(2016), depois de um hiato pra mim de dois CDs, Eu não sei Sofrer em Inglês(2011) e(2014). Doce reencontro. No final da primeira audição do quarto álbum do cara veio a sensação de uma música mergulhada na gentileza e que nos leva ao território do aconchego. Mesmo nas faixas em que o verbo solto rasga a seda, há na poesia das letras uma engenharia que conforta a alma. O mais recente disco desse nascido pernambucano, crescido e assumido maranhense, se aferra assim à maturidade, com toda a serenidade que esse abraço produz. Porque Bruno Batista parece ter achado o ponto da virada para cair na graça de uma plateia mais abrangente. Ele mostra-se preparado, e muito bem preparado, para ganhar o Brasil que extrapola as fronteiras de seu bem amado Maranhão. 

Bruno usa o verbo das associações e rimas serenadas
Bagaça é fel e mel. Tange a realidade com sua poesia de encontros e partidas. De associações surpreendentes do rico vocabulário português, esse casamento consumado com a beleza de nossos verbos tão sonoros, das rimas serenadas que nos espinha ao mesmo tempo que acaricia. O que pode essa língua? Desde a primeira música, que intitula o disco, com lindo arranjo de cordas, aliás, um lugar comum no álbum, Bruno Batista ateia fogo na palavra expondo seu universo rico de imagens e provocações, prenhe de invocações. “Onde será que isso termina, urucubaca, ronco de trovão/Essa ressaca, essa heroína, essa maldita fiação(...)Eu não quero saber em que espelho se vê a minha geração/vou encharcando o barro, empurrando o carro, esmurrando o portão”, avisa o artista sem cerimônia, mas com uma elegância pouco vista por músicos de sua geração. Às vezes é preciso ser culto pra se mandar alguém à puta que o pariu. E isso faz uma grande diferença. Porque nesse mundo, arremata Bruno na mesma canção com andamento moderno e vibrante, “todos querem a novidade, todos querem a babação, ninguém quer piedade, todos querem perdão”. Um desabafo em tom maior, uma bela introdução para a arte bem engendrada do cantor e compositor.

A música de Bruno tem inteligência e substância, dessas cujo conteúdo não perdem de vista a relação amorosa com o público. Ou seja, está longe de ser metida a besta ou difícil. Por isso dialoga, num espasmo único, com os que entendem os versos barrocos e cheio de referências cultas de “A Ilha”, música dedicada a São Luís que um dia será abraçada pela cobra gigante que morde o próprio rabo. E também com aqueles que gostam de chacoalhar com músicas decentes e espertas. “Nigrinha”, parceria com o também maranhense Zeca Baleiro, está prontinha para tocar nas trilhas de novelas da Globo. Com o balanço irresistível das guitarras do paulista Gustavo Ruiz e do paraense de Felipe Cordeiro, um dos renovadores da música do Norte, essa canção é pura pérola pop com seu arranjo buliçoso e letra de apelo radiofônico: “Torce pelo amor sincero, vendo a novela das nove/Quando o galã diz te quero e a mocinha se comove/Nigrinha, nigrinha, nigrinha não se abala com gentinha/Nigrinha, nigrinha, quem disse que era minha?”. No mesmo diapasão, o ouvinte se depara com as folhetinescas “Blockbuster” e “Você não Vai me Esquecer Assim”. A primeira é uma desbragada assunção de fim de caso. A segunda, feita pra dançar agarradinho, traz mistura de guitarras havaianas com brega e o bolero, carrega na letra cinematográfica, repleta de imagens de um cotidiano bem humorado: “Depois de começar um novo drama e nunca lembrar de apagar o gás/Depois de escolher o lado da cama e contar as horas para trás/Você não vai me esquecer assim, meu bem”.

Capa do disco de Bruno Batista: véu da sensibilidade
É o mesmo Bruno Batista que usa a veia poética e coração desnudado para tocar o véu da delicadeza. E esse espírito pouco comedido e oferecido, graças a deus, vai buscar inspiração em ritmos tradicionais do Maranhão para se oferecer no disco, por meio da elaborada química do arranjo, moderna e emotiva, na linda “Batalhão”. Aqui, os tambores e as matracas hipnóticos do bumba meu boi, em compasso com as guitarras derramadas, conquistam uma nova dimensão para representar o batalhão de rosas. A música gentil ganha ainda outros ecos em composições onde o delicado emerge imantado e encantadoramente. É assim na encorpada “Caixa Preta”, climática, etérea, com marcante arranjo de cordas e solo apaixonado. “Teu corpo é o primeiro plano, paixão ilícita/Minha seiva e destruição(...) Eu gosto do teu corpo e do que ele faz”. E principalmente nas inspiradas “Guardiã”, uma das mais belas melodias do álbum, música para um amor de toda estação, e “Turmalina”, cantada por Dandara, parceira de velhas batalhas e palcos. Poesia unha e carne com a melodia, essa canção é uma acachapante ode ao amor que unifica almas: “Você é o colar de turmalina, eu o coração, o camafeu/Você a cajuína, doce de nata/O teu lugar, o teu lugar é o meu”. Por essas e outras obras do afeto, Bagaça é disco de se guardar, de se ouvir de olhos fechados e coração aberto, de se dançar com todas as células do corpo, deixando-se emaranhar na sensibilidade que esse grande artista expõe de forma tão crua e certeira. Seja você essa bagaça.

Cotação:  Bom

Com amor e com afeto, faça o download:

http://brunobatista.net/

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