sexta-feira, 1 de abril de 2016

Lâmina cortante, essa mulher

A empoderada Larissa mostra as garras e o verbo
Tem que ter mais. Tem que se multiplicar nesse país imaturo a mulher negra, branca, cafusa, amarela que fala, solta o verbo, dá cara a tapa, dá tapa no mundo, transcendendo o discurso feminista, acendendo faróis. Que o discurso seja feminino, de gente esclarecida, daquela empoderada de si mesma, que reconhece e põe o dedo, de unhas feitas, na ferida do preconceito, na gangrena do homem bruto. E que isso resgate dignidade, ferroe a consciência e baste para que a sociedade se olhe no espelho da hipocrisia e seja simplesmente humana. Bom ouvir e sentir esse verbo gritado e ativo na voz dessa baiana desabusada chamada Larissa Luz. Confidências e inconfidências de uma artista ligada a seu tempo, provocativa e intensa nesse Território Conquistado (2016), segundo álbum de uma negra que, além de linda, quer ser merecidamente ouvida e respeitada. Dez canções dedicadas a dez mulheres que deixaram marcas na história e servem de referência para aquelas que se amam e não se calam diante da ignorância e dos que resistem a uma mais que necessária evolução da realidade.

Veja e ouça “Território Conquistado”:

Território Conquistado é exercício de talento e contemporaneidade. A música de Larissa Luz se insere em um tempo em que a pro-atividade é mecanismo preciso para que nosso cotidiano não se afunde na lama do retrocesso e da barbárie. Porque temos tendência a essa barbárie, a brutalização do sentimento provocado por uma sociedade de homens bombas e balas perdidas cada vez mais individualista e amedrontada. Ainda matamos, ainda passamos fome, ainda tratamos a mulher e os negros, a gente de tantas cores, de maneira burra e desigual. A baiana revela-se em paz com relação aos genes e gênero e reativa aquilo que a corrói e a eleva no seu bonito e moderno álbum. No discurso (ela também é compositora, em parceria, de todas as canções) e na sonoridade. Não é um disco fácil, porque está longe de ser condescendente com o que está culturalmente institucionalizado, principalmente no que se refere à condição do gênero feminino, e com os ouvidinhos acostumados a uma mesma e empobrecida trilha sonora. Ou seja, é trabalho pra causar incômodo, mas passado os primeiros momentos de intranquilidade de quem o escuta, não tem como resistir à inteligência da proposta musical, feita de corte e aço.

Elza Soares dá palhinha de luxo no álbum
Larissa Luz é lâmina e transparência. Seu universo feminino é explorado da maneira mais honesta e direta que sua inquieta alma permite. A ex-integrante da banda Araketu, que tem ainda no currículo o trabalho solo MunDança(2013), evolui em Território Conquistado, radicalizando na sonoridade e experimentalismo, testando corajosamente uma música que belisca o rap, o rock com veia punk e a música negra de raiz. Um som que torna-se orgânico com a ferocidade e o cunho intimista das letras. E talvez seja esse mesmo o conceito proposto. Vestir seu discurso engajado e radical, do ser mulher e do ser espiritual, com uma roupagem sonora moderna que busca fugir de classificações, ainda que se visualize aqui e ali influências musicais. É um disco eminentemente autoral com toda a verdade que essa palavra implica. E a carta de intenções é apresentada logo no início do disco, com a inclassificável “Descolonizada”, que mistura de rock(plugue-se na guitarra de Pedro Itan) e rap e demonstra o poderio da moça sem meias palavras: “Eu quero voar, escrever o meu enredo. Liberdade é não ter medo/Eu não vou entrar nessa jaula, eu não nasci para ser adestrada”. Um começo devastador e que nos prepara para a saraivada da mais santa verborragia que vem na sequência.

E pra toda a saraivada há uma mulher homenageada. Cada música, uma referência e uma reverência. Da mãe, Regina Luz, a outras guerreiras também cheias de muita luz: Carolina de Jesus, Bell Hooks, Victoria Santa Cruz, Elza Soares, Makota Valdina, Chimamanda Ngozi Adichie, Beatriz Nascimento, Lívia Natália e Nina Simone. E como uma Elza Soares que resiste imperativa aos trancos da vida, Larissa canta a força de seu sexo, desafiando os machistas de plantão e aquelas que definham em seus quartos arregadas pela opressão. Junto com a excepcional musa da MPB, a baiana engrena um rap moderno na ótima canção que dá título ao disco e desafia: “Boto fogo no olhar e acendo minha consciência. Jogo pra ganhar. Me abasteço de argumento, conteúdo é munição”. Elza não foge à luta e complementa com sua voz altiva e provocadora: “Ocupamos nosso espaço, cada passo um espaço. Para quem não conhece o respeito, eu sou um perigo”. Em “Bonecas Pretas”, outra música dançante com toque de eletrônica e tambor, na mesma linha contestatória e politizada, a artista reclama mais espaço no mundo para brinquedos sem distinção de cor: “Um caso contestável, direito questionável, necessidade de ocupar, invadir as vitrines(...)Cor, identificação transformadora: procura-se bonecas pretas”.

O discurso de Larissa Luz não é raivoso, é de quem escolheu o caminho de se impor, de ser tratada por igual. Nem que pra isso tenha que enfrentar um exército de desarrazoados. É guerreira de fé e nascença. E sua arma é o verbo afiado e uma voz afinada, cheia de personalidade: ‘Minha voz vai te ferir, meu sorriso vai fazer você sangrar/Minha força, espinhos que espetam você”, avisa em “Violenta”. Coisa de gente bem resolvida, que conhece o que a rodeia e a si mesma. Não à toa, revolve a espiritualidade que tem em si, como em “Banho de Mar”, bela música de estranha sonoridade, de experimentalismo regado a batuque de candomblé: “Mau olhado chegou na minha frente, deu de cara com a minha fé e nada me causou/Se recolheu gentilmente com medo de, de repente, tropeçar no próprio pé”. Uma religiosidade incorporada epidermicamente em Larissa, porque, afinal, corpo também é igreja, como traduz em “Transe”: “Dança, bruta, dança violenta, verdadeira, prepara meu corpo para ser sua morada. Alma lavada”. E também na fantástica “Meu Sexo”, com levada de funk carioca e guitarra e baixo marcantes, destaques também nesse disco: “Despudorada, empoderada, eu não abro mão do meu sexo/(...)/Ei, é o meu sexo. Quem disse que é pra você?”. Larissa é uma artista jovem e rara, uma mulher que não quer passar impune por seu tempo, e “Território Conquistado”, um testemunho ativo dessa beleza toda.

Cotação: Ótimo

Faça o download:
http://www.larissaluz.com/territorioconquistado/index.html

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