A empoderada Larissa mostra as garras e o verbo |
Veja e ouça “Território Conquistado”:
Território Conquistado
é exercício de talento e contemporaneidade. A música de Larissa Luz se insere em um tempo em que a pro-atividade é
mecanismo preciso para que nosso cotidiano não se afunde na lama do retrocesso e
da barbárie. Porque temos tendência a essa barbárie, a brutalização do
sentimento provocado por uma sociedade de homens bombas e balas perdidas cada
vez mais individualista e amedrontada. Ainda matamos, ainda passamos fome,
ainda tratamos a mulher e os negros, a gente de tantas cores, de maneira burra
e desigual. A baiana revela-se em paz com relação aos genes e gênero e reativa aquilo
que a corrói e a eleva no seu bonito e moderno álbum. No discurso (ela também é
compositora, em parceria, de todas as canções) e na sonoridade. Não é um disco
fácil, porque está longe de ser condescendente com o que está culturalmente
institucionalizado, principalmente no que se refere à condição do gênero
feminino, e com os ouvidinhos acostumados a uma mesma e empobrecida trilha
sonora. Ou seja, é trabalho pra causar incômodo, mas passado os primeiros
momentos de intranquilidade de quem o escuta, não tem como resistir à
inteligência da proposta musical, feita de corte e aço.
Elza Soares dá palhinha de luxo no álbum |
Larissa Luz é
lâmina e transparência. Seu universo feminino é explorado da maneira mais
honesta e direta que sua inquieta alma permite. A ex-integrante da banda
Araketu, que tem ainda no currículo o trabalho solo MunDança(2013), evolui em Território
Conquistado, radicalizando na sonoridade e experimentalismo, testando
corajosamente uma música que belisca o rap, o rock com veia punk e a música
negra de raiz. Um som que torna-se orgânico com a ferocidade e o cunho
intimista das letras. E talvez seja esse mesmo o conceito proposto. Vestir seu
discurso engajado e radical, do ser mulher e do ser espiritual, com uma
roupagem sonora moderna que busca fugir de classificações, ainda que se
visualize aqui e ali influências musicais. É um disco eminentemente autoral com
toda a verdade que essa palavra implica. E a carta de intenções é apresentada
logo no início do disco, com a inclassificável “Descolonizada”, que mistura de
rock(plugue-se na guitarra de Pedro Itan)
e rap e demonstra o poderio da moça sem meias palavras: “Eu quero voar,
escrever o meu enredo. Liberdade é não ter medo/Eu não vou entrar nessa jaula,
eu não nasci para ser adestrada”. Um começo devastador e que nos prepara para a
saraivada da mais santa verborragia que vem na sequência.
E pra toda a saraivada há uma mulher homenageada. Cada
música, uma referência e uma reverência. Da mãe, Regina Luz, a outras guerreiras também cheias de muita luz: Carolina de Jesus, Bell Hooks, Victoria Santa
Cruz, Elza Soares, Makota Valdina, Chimamanda Ngozi Adichie, Beatriz
Nascimento, Lívia Natália e Nina Simone. E como uma Elza Soares que resiste imperativa aos
trancos da vida, Larissa canta a
força de seu sexo, desafiando os machistas de plantão e aquelas que definham em
seus quartos arregadas pela opressão. Junto com a excepcional musa da MPB, a
baiana engrena um rap moderno na ótima canção que dá título ao disco e desafia:
“Boto fogo no olhar e acendo minha consciência. Jogo pra ganhar. Me abasteço de
argumento, conteúdo é munição”. Elza
não foge à luta e complementa com sua voz altiva e provocadora: “Ocupamos nosso
espaço, cada passo um espaço. Para quem não conhece o respeito, eu sou um
perigo”. Em “Bonecas Pretas”, outra música dançante com toque de eletrônica e
tambor, na mesma linha contestatória e politizada, a artista reclama mais
espaço no mundo para brinquedos sem distinção de cor: “Um caso contestável,
direito questionável, necessidade de ocupar, invadir as vitrines(...)Cor,
identificação transformadora: procura-se bonecas pretas”.
O discurso de Larissa
Luz não é raivoso, é de quem escolheu o caminho de se impor, de ser tratada
por igual. Nem que pra isso tenha que enfrentar um exército de desarrazoados. É
guerreira de fé e nascença. E sua arma é o verbo afiado e uma voz afinada, cheia
de personalidade: ‘Minha voz vai te ferir, meu sorriso vai fazer você
sangrar/Minha força, espinhos que espetam você”, avisa em “Violenta”. Coisa de
gente bem resolvida, que conhece o que a rodeia e a si mesma. Não à toa,
revolve a espiritualidade que tem em si, como em “Banho de Mar”, bela música de
estranha sonoridade, de experimentalismo regado a batuque de candomblé: “Mau
olhado chegou na minha frente, deu de cara com a minha fé e nada me causou/Se
recolheu gentilmente com medo de, de repente, tropeçar no próprio pé”. Uma
religiosidade incorporada epidermicamente em Larissa, porque, afinal, corpo também é igreja, como traduz em
“Transe”: “Dança, bruta, dança violenta, verdadeira, prepara meu corpo para ser
sua morada. Alma lavada”. E também na fantástica “Meu Sexo”, com levada de funk
carioca e guitarra e baixo marcantes, destaques também nesse disco: “Despudorada,
empoderada, eu não abro mão do meu sexo/(...)/Ei, é o meu sexo. Quem disse que
é pra você?”. Larissa é uma artista
jovem e rara, uma mulher que não quer passar impune por seu tempo, e “Território
Conquistado”, um testemunho ativo dessa beleza toda.
Cotação: Ótimo
Faça o download:
http://www.larissaluz.com/territorioconquistado/index.html
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