Os quatro gaúchos de Milão cantam em três línguas em Loreto Paradiso |
E veio esse tempo da ditadura da tecnologia. Duro e frio tempo de gente conectada com chips, baites, pen drives, cabos, telefones móveis com suas luzinhas e barulhinhos secos que andam tatuados nas mãos como anéis que se aninham entre a gordura dos dedos. Era inevitável o avanço do futuro, daqueles porvires que lembram os autômatos do cinema passado, nós próprios parecendo um. Evolução da comunicação transferida pelos ares, captadas por satélites, transformada em conversas cheias de palavras abreviadas, curtas, obsessivas. É a vida virando onomatopeia. Vendo gente de cara com a outra, cara a cara, que se fala por celulares e se cala então, vem a nostalgia do toque, not screen, mas da mão suada e do diálogo generoso feito de língua e ouvido, de reações iluminadas, não pela tela, mas apenas pelo brilho dos olhos ou pelo sorriso discreto no canto da boca. É a nostalgia que inexiste, pela falta de prática e vivência, numa geração que já nasceu ninada e pilhada pelos sons do computador e de uma avassaladora internet. Por isso salta à vista quando esse sentimento franco de saudade é aceso por esses meninos que o traduzem de forma tão objetiva e que são, eles mesmo, retratos involuntários de um mundo em que ao mesmo tempo que cobra a globalização, gera a separação. Taí esses garotos da banda Selton, que acabam de lançar Loreto Paradiso (2016), para provar isso.
Veja o clipe de “Junto Separado”:
Selton é assim a
cara desse admirável mundo novo nem tão novo assim. Gaúchos de tenra idade que
foram parar na Itália para descobrir que podiam ser admirados exercitando uma
música multicultural, de cores e temperos universais. Loreto Paradiso é trilíngue, cantado em português, italiano e
inglês tão organicamente que esses músicos bem que poderiam ter vindo
indistintamente de qualquer um dos países fontes dos sotaques da banda, sem que
nos provocasse estranheza. Não fosse pela sentida nostalgia do Brasil e que dá
uma identidade mais nítida e aproxima a banda dos tons verdes e amarelos. Mesmo
quando se mostram extremamente estrangeiros e cosmopolitas, tá lá a saudade
desse país hoje tão dividido politicamente. É o caso explícito e amoroso da
canção “Junto Separado”, que ganhou um clipe moderno e emblemático. Minimalista
bossa nova, de andamento hipnótico, questiona exatamente, em tradução objetiva,
essa inquietante e contemporânea separação provocada pela tecnologia e pelos
insurgentes e reveladores comportamentos da nova era. “Se tá todo mundo vivo,
porque tá todo mundo tão separado, então?”, questionam os rapazes. E listam, ao
som de um violão triste e barulhos tecnológicos, aquilo que poderiam nos
aproximar e que, pelo contrário, só ajuda a aumenta abismos: “E vem laptop, palmtop,
tablet, smartphone, notebook, walkie talkie, tralha e youtube, tudo isso pra
quê?”.
Quarto álbum traz influência do indie, música italiana e do Brasil |
Se tem uma certa coloração tupiniquim, imagino o papa João Gilberto arranhando a música mesmo
que seja por brincadeira, “Junto Separado” tem também uma marcante vontade e
aqui, talvez, uma natural consequência da trajetória além de nossas fronteiras compartilhada
pela Selton e que a leva ao
pluralismo musical. Ramiro Levy
(voz, guitarra e ukelele), Ricardo
Fischmann (voz, guitarra e teclado), Eduardo
Stein Dechtiar (voz e baixo) e Daniel
Plentz (voz, bateria) parecem estar sendo vendidos pela nova gravadora, a
blockbuster Sony Music, apesar de ter três álbuns na bagagem, como a novidade
brasileira que vem de Milão com influência do indie americano. E toda essa
bagaça multiétnica transparece em Loreto
Paradiso de maneira bem estanque e territorializada. A influência da Milão
em que vivem e dos cantores italianos, como Enzo Jannacci, que dizem idolatrar e homenagearam com um disco,
está por exemplo em “Qualcuno mi Escolta”. Com ares do solar e frívolo
cancioneiro italiano, a composição é realmente uma reverência feliz aquela
escola musical que um dia, no século passado, o Brasil também já amou e que
talvez faça ainda mais sentido ao vermos que o sul do país, região onde os
meninos nasceram, teve um relacionamento passional com imigrantes italianos.
Volare, amigos. A sensual língua italiana reaparece mais interessante ainda na
grudenta e gostosa “Buoni Propositi”, que tem no disco uma versão em português
sem um décimo do charme que a estrangeira possui.
Mas, italianismos e nostalgia
brasileira a parte, a Selton globalizada
e roqueira, gênero que faz decididamente a cabeça desses gaúchos, se faz mais
presente no lado indie americano de Loreto
Paradiso. Essa influência mais incisiva já podia ser vista em Saudade(2013) trabalho anterior do grupo
e que chamou atenção da crítica e dos indies de plantão. Com uma sonoridade que
lembra as bandas Vampire Weekend, Foals e Animal Collective, que trouxeram justamente ao padrão indie um tom
mais universal ao pinçar da África e outros continentes alguns elementos
sonoros. Esse rock alternativo, mais cabeça e menos barulhento, nada de “metal
fudido”, como ironizam na bem humorada “Cemitério de Elefante”, ganhou refinamento
neste último trabalho da banda com a participação ilustre do italiano Tommaso Colliva, que já havia produzido
canções de bandas renomadas como Franz
Ferdinand e Muse. Guitarras
comportadas e bem tocadas em sintonia com barulhinhos estranhos, tecladinho oldie
e profusão do coro afinado desses meninos, em bons arranjos, comprovam essa
evolução, principalmente nas músicas cantadas em inglês. É o caso da bacaninha “Be
my Life” (repare no teclado que introduz a música), de refrão gachudo, na
climática “Duty Free Romance”, cuja delicadeza e elegância lembra dos pre-indies
ingleses do Style Council, e na ótima
composição que dá nome ao álbum.
Capa do novo disco traz referência a cidade onde o grupo mora |
Tudo bem, esses rapazes da Selton, que reproduzem no jeito de fazer
música e nas letras diretas esse mundo novo de embolada global, não são exatamente
a sétima maravilha da new generation brasileira. E nem tem essa pretensão,
imagino. Talvez queiram até ser pops, mas o caminho alternativo que escolheram
não o levarão a isso. Nem são também essa hype que a imprensa e os marketeiros
da gravadora o querem definir. E a internet, que tudo nivela, possa até
alça-los a um patamar mais justo de reconhecimento, diante de um quadro musical
marcado recentemente por bobagens do tipo NX
Zero e Fresno. E mesmo sem ter o
peso e a clarividência de ótimos grupos como Boogarins, Apanhador Só
e O Terno, contemporâneos cuja
personalidade fica mais evidenciada, Selton
mostra em seus dez anos de carreira uma coerência que pode levá-la a frutos
mais tenros. Loreto Paradiso tem
clarões de maturidade que fazem com que lá na frente a promessa dessa se tornar
uma grande banda se cumpra. Talvez quando perderem um pouco da assepsia, cujos
ecos no álbum me incomodam, e mergulharem em voos mais radicais que a alma
brasil desses meninos pode sugerir. Esse disco vale uma escutada porque tem
ainda mais cara de transição que o anterior. O que virá a seguir? Não sei, mas
o que vier é lucro.
Cotação: Bom
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