segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Experiência sensorial libertária

Luísa Maita une sensualidade a belo repertório
Tem sensualidade que soa bruta, arranhando pele, agredindo nossa sensibilidade e deixando marcas indesejáveis. Excessiva. Repressiva. E que assusta tanto quanto afasta porque não estamos preparados para tamanha efusividade, para tanto alarde. Dose pouco justa na medida errada de nossa alma como peças de um quebra-cabeça que não encaixam. Desmedida. Tem sensualidade que chega mansinha, marcando a chegada com o toque da suavidade, eriçando pelos, sublinhando peles. Permissiva. Libertária. Como uma ária dessas arquitetadas pelas entranhas do autor e que envolve a gente com um poder de sedução que foge do nosso controle. E simplesmente nos deixamos levar como se amansados por uma inesperada brisa, daquelas que na varanda de um litoral tranquilo nos faz cerrar as pálpebras e levitar. Unir música e sensualidade é um exercício pra quem pode. Fazer desse dueto um elemento de levitação, sem a sombra da letargia que nos deixa inertes, é magia e arte. Nesse laboratório sensorial, doses certas de paixão pelo trabalho e “cientistas” alinhados a esse entregar-se fazem a grande diferença. Fio da Memória, segundo álbum da paulistana Luísa Maita é isso, um fabuloso campo de experiência musical no qual a sensualidade é utilizada de forma natural a serviço de nosso deleite. Somos cobaias rendidas e bajuladas e, com certeza, adoramos isso.

Veja vídeo de “Around You”:


Luísa Maita quis fazer um trabalho que percorresse o fio de nossa medula, ouriçando a epiderme, e chegasse transparente e apaixonante em nosso cérebro para a degustação detida e mais completa. E diferente do que fez no bom Lero-lero(2010), o primeiro da carreira, no qual explora uma veia mais MPB e tradicional, mas com os toques de modernidades que veríamos nesse segundo, a artista apostou em tons eletrônicos na linha tribal, jazzy e dancehall, na verdade sinapses para sensações mais cruas propostas no disco. Seguiu uma linha que a aproxima, só para se ter uma referência mais próxima, aos movimentos iniciais da cantora Céu. Busca nas batidas tecnos uma base para sua imersão nos toques brasís. Sim, porque a eletrônica é um forte tempero para apimentar a relação com uma sonoridade diversa, múltipla, que tem a cara escarrada e esculpida de nosso Brasil brasileiro. Essa nação que tá sempre gestando em nossa memória e que por um fio inquebrantável nos faz ser o que somos. A cantora de voz quente nos convida para a festa no porão onde tambores e bpms agitam nosso coração, como provoca na deliciosa “Porão”. “Quem me mandou pra festa do porão?”, questiona ela. Quem mandou cutucar a onça com vara curta? “Quem chegou não pode sair, quem entrou não pode voltar”, dita a hipnótica canção com arranjo de percussão fervilhante. E é difícil sair mesmo desse lugar enfeitiçado em que Luísa com sua música nos enreda. O jeito é dançar conforme a música.

Artista compôs oito das 11 músicas do disco
E dançar conforme a música é estar preparado para momentos de bipolaridade, onde a calma e a agitação, amarradas por um formato musical no qual eletrônica e tambores formam belo par, se alternam. A música “Porão” é a síntese da musicalidade de Fio da Memória e seu Lado A, o lado mais dançante, que chama mansamente para a festa. E o timbre macio, com afinação afiada de Luísa, é quase um contraponto bestial para a produção esmerada e arquiteturas sonoras criadas por ela, Tejo Damasceno, uma das partes indivisíveis da super banda Instituto, e Zé Nigro para as batidas evocativas da dança. Exemplos de “Na Asa”, que abre o disco e a mais descaradamente eletrônica de todas com seus sintetizadores envolventes, “Folia”, com prevalência para o batuque em acompanhamento surpreendentemente para o transe vocal da artista e a ótima “Around You”, cantada em inglês, um flerte magnético com o candomblé e as pistas. Essas quatros canções mais agitadas comprovam ainda o dom em evolução pra compor de Luísa Maita, única autora de oito das 11 músicas do disco. Bom exemplo é “Folia”, em parceria com Daniel Taubkin, que incorpora bela poesia popular: “Se você nunca ouviu essa triste melodia que ainda alegra esse quintal/Rezo para que um dia você tropece nesse samba e mereça essa folia”.

À vontade, Luísa acertou no tom e na guinada
As letras de Luísa harmonizam também com o espírito da obra no Lado B  de Fio da Memória, o lado do descarrego sensual do disco que conta, com igual peso e medida, com os mesmos bons arranjos, boas tramas sonoras e grandes músicos (entre eles Douglas Alonso, Fernando Catatau, Jam da Silva, Rodrigo Campos e Zé Godoy) presentes no lado atiçado do álbum. Guitarras marcantes, pitacos eletrônicos e elegância injetam organicidade e beleza a “Olé”, uma das mais bacanudas do repertório, que tem letra reveladora do momento confiante da artista: “Agora vou me aprumar e aqui ninguém vai me tirar o que é meu e o que virá”. Tá certo, garota, o que é seu ninguém tira nem tem poder ou ousadia de tirar. E essa sensualidade que reverbera no ouvido e aquece nosso coração se mantém ativa e proeminente em outras lições de boa música de cadência suave e alto poder sedutor. Casos de “Fio da Memória”, um lamento apaixonado e apaixonante onde o casamento de cordas, sintetizadores e voz impressionam, e da linda “Volta”, com poesia confessional e forte melodia. Não é fraca não essa menina de lances surpreendentes. Se Fio da Memória é uma guinada com relação a Lero-lero é porque Luísa é afeita a mutações e novas experiências. E essa insatisfação com o que já veio e o que virá garante vida longa a essa artista que faz de seu atual momento uma ponta de lança para um futuro promissor. Siga o fio. E que isso fique na memória.

Cotação: 4

Escute o fio da memória:


Linke-se ao fio da memória:

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