segunda-feira, 25 de março de 2019

Genialidade intacta


De caminho torto ele entende bem, torto que é. Marginal
que é. Vive à margem, andando no compasso da precisa coreografia
dessa sombra que o persegue. "Marginal é o caralho", diria ele, 
entre uma tosse e o escarro. Entre a careta e o escárnio. Não para 
contestar o adjetivo, mas sim para constatar com ironia o que nasceu 
pra ser. Anda por vias transversas por opção, por que o seu mundo e 
exercício musical o levavam invariavelmente por ali, deixando para trás, 
sem arrependimento, as poucas apalpadelas que deu na bunda do 
sucesso. E ele parece nem está aí pro hit, pro pop, pro Faustão ou
outros arrotos globais. Sensato, coerente como sempre foi com o pacto 
de sangue que fez com um Brasil de vanguarda, de musica atrevida e
inquieta. É esse Macalina, esse Jards Macalé que continua solto, 
feito besta fera, em seu último trabalho, provocante e radical, uma jóia
rara, 20 anos depois do último disco que lançou.



Besta fera(2019, Pommelo) é Macalé de corpo, alma e criatividade.
É um disco agudo, pensado e construído com parceiros que rezam pela mesma cartilha. Se você encontrar elementos parecidos
nas obras de reinvenção de Elza Soares, A Mulher do  Fim do Mundo (2015) e Deus é Mulher (2018), não se espante. Comemore.
Os músicos que se juntaram a musa negra nessa trilha são os que marcaram de se encontrar na mesma encruzilhada proativa
com o mago carioca. Porque essa  simbiose não é coisa do destino, é confluência natural. Estão lá, Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, 
Thomas Harres, Clima e Rodrigo Campos, entre outros, que já algum tempo nadam contra a caretice musical e gostam de a
prender a nadar com sábias figuras que tem muito a ensinar. E Macalé já havia mostrado, quando aqueles caras ainda eram
apenas moleques, que o buraco é mais embaixo, que era preciso desafinar o coro dos contentes. Foi assim com Aprendendo 
a Nadar (1974)  e o maravilhoso Contrastes (1977), discos seminais desse grande criador.

O artista passou por poucas e boas no prolongado lapso que o deixou afastado dos estúdios. Quase morreu nas garras de
uma broncopneumonia, mas sobreviveu para se mostrar incurável em sua eterna irreverência. Enganou os bestas, como maquiavélico
malandro que é, desafiou o diabo, comeu o tempo do esquecimento pelas beiradas para voltar ainda mais ácido e torto. As células
do inconformismo se multiplicaram no seu corpo redivivo e geraram música indigesta para os ouvidos pobres no ótimo Besta Fera. ]
Nesse álbum, Macalé passeia pela obra de autores provocadores como ele. Já de início, o soco reverbera em "Vampiro de Copacabana",
música que se ampara na poesia cortante e gutural de Kiko Dinucci. "Ah, o puro breu, dama da noite, caminho torto, ah, olhos de 
sangue", concretismo que inspira um arranjo matador que modula batidas sombrias e samba tradicional, criando tensão 
dramática e maravilhas.

O som nervoso, com um pé no contemporâneo e um pé no passado, se alterna
com uma sonoridade mais serena. "Trevas", a mais radical das composições do
disco provoca hipnose como o transe das estradas, gera o desconforto da criação
que não se adequa ao pop chinfrim ou a MPB assobiável que se ouve nas rádios.
Tem a assinatura de Macalé e de Ezra Pound, com tradução de Augusto de 
Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. E isso não é pouco, ainda
mais quando os produtores musicais e arranjadores buscaram estar a altura da
genialidade daqueles caras. E se saem bem nesse desafio. A batida sincopada
da bateria e das cordas em diálogo com uma levada às vezes bossanovista às
vezes jazzística valoriza uma letra que reflete o estupor diante desse país à beira
do abismo bolsonarista. "Chegamos ao limite da água mais funda/Trevas, trevas 
mais negras sobre homens tristes, o caos". É o Brasil desnudado e urgente. 
E ainda tem aqui a sacada do cara que resolveu, num certo momento, gravar o refrão da música com a cabeça dentro de uma 
bacia cheio de água. Pura e deliciosa invenção.

Veja o clipe de Trevas: 
https://www.youtube.com/watch?v=ZOc-gE_da7o

Da mesma lavra de "Trevas", a potente "Pacto de Sangue" tem letra circular e arranjo instrumental complexo, armadilha que nos rende 
inevitavelmente. "Seu pai não quer que você se perca na cidade má e misteriosa que ele mesmo fez e desconhece", canta ele, com 
seu inconfundível e grave vozeirão, a herança que deixamos no embate diário com a cidade grande, essa inter-relação viciada que traceja
amor e ódio numa trama autofágica. Incisividade poética que se mantem poderosa na bela "Peixes", com referência lúdica ao mestre 
Dorival Caymmi e que traz uma química perfeita com a convidada Juçara Marçal, parceira  talentosa e constante dos projetos musicas 
da super turma paulista que ajudou a produzir o disco. Moderna e chapante, "Limite", com letra da vanguardista Ava Rocha, é outra 
surpreendente criação de levada etérea, estranheza e belíssima interpretação de Macalé, acompanhado de guitarra dolorida 
tocada por Dinucci.

E tem um outro Macalé, em tom menor, mas não menos impressionante em canções como "Obstáculos", plena do violão virtuoso e 
único do artista e carregada de uma melodia triste, linda, com certeza um dos pontos fortes e mais intimistas do álbum. Nela persiste 
uma declaração pessoal dos perrengues que o músico passou em toda sua incandescente vida: "Entre vidros e cascalhos, entre espinhos 
e vergalhos, vou levando a vida assim/ Tem montanhas, obstáculos, tem pedreiras, não derrapo, tenho mesmo que seguir". "Besta Fera", 
que dá nome ao disco, e que tem letra de Gregório de Matos, também se ilumina com um som de saxofone dissonante ao dedilhar do 
cavaquinho, casamento que rende um samba estranhamente delicioso. "Eu sou aquele com o passar do ano cantei minha lira maldizente, 
torpezas do Brasil, vícios, enganos".  Arranjos mais tradicionais mapeiam outros momentos tranquilos do álbum como a bossanovística 
"Meu amor Meu cansaço" e "Tempo e Contratempo", um retorno ao velho Macalé que flerta com o suingue sem perder o rebolado e, 
por fim, no samba puro de melodia marcante "Longo Caminho do Sol", que já pode ser considerada um clássico do cancioneiro "macalista". 

Jards Macalé, 20 anos depois de O Q Faço é Música (1998) retorna com todo
o gás da inventividade, espanando a poeira da estagnação e chamando para si,
mais uma vez, a responsabilidade de abalar a estrutura de nossa MPB careta.
Besta Fera é obra perene que marca o início de ano, uma lufada de modernidade e
ruptura. Porque música nos ajuda a salvar dos males da vida, dos abismos, e a
chacoalhar com nosso cérebro. Com Macalé, qualquer um pega no tranco. É
sonoridade com tutano e bom gosto. Que seja inspiração para essa geração como
o foi para gerações do passado. Que Macalina seja o futuro.

Cotação: 5

Se arrepie:
https://mega.nz/#!AllTCSLB!UlDdn935OZZZVHs5e7H15_HUdbU-uWfbMasgZZwDVS0


Gasolina na monotonia

O fogo é um elemento vivo, hipnótico e, fundamentalmente, poderoso. Como um deus dançarino que carrega em sua coreografia desordenada o dom...