segunda-feira, 8 de abril de 2019

Gasolina na monotonia



O fogo é um elemento vivo, hipnótico e, fundamentalmente, poderoso. Como um deus dançarino que carrega em sua coreografia desordenada o dom da vida e da destruição, que tanto ilumina quanto pode hospedar as trevas se dispara sem arreios. Se alimentamos em nós a chama da insatisfação, incorporamos algo que se assemelha ao fogo e, se ela é avivada por qualquer motivo, aí a centelha se faz incêndio. Que se alastra pela alma daqueles que comungam do mesmo descontentamento. Que instiga e transforma. Essa mensagem parece estar implícita, recorrente no discurso fervoroso e na sonoridade explosiva de Rasgacabeza(2019), o segundo álbum cheio do combo Francisco, el hombre. Incendiário e feito para as pistas, o esperado trabalho dessa banda que reúne brasileiros e mexicanos tem veias que pulsam aceleradas e por onde corre o sangue do inconformismo e da provocação.

Francisco, el hombre
segue um rumo natural que, de alguma forma, foi traçado pelo álbum anterior e que revelou o grupo para os brasileiros antenados com novas batidas, o excelente Soltasbruxa (2016). Assisti esse bando de loucos em Brasília há um ano num show catártico daquele disco e cuja sonoridade se mostrou melhor e mais íntegra do que a gravada em estúdio. Ali já se via engajamento, uma preocupação em sacudir o marasmo, de chamar a galera pra roda do ativismo. E desde sempre trazia a memória o som e a sandice iluminada de outro grupo de celerados, pela performance no palco e pela mistura anárquica de ritmos latinos e rock que promoviam, Mano Negra, de onde saiu Mano Chao, que fez relativo sucesso entre os amantes da música alternativa e da marijuana na década passada. Meio circenses, meio performáticos, como num universo muito próprio, chamavam atenção com atrevimento e alegria para a realidade que nos cercava.


Assista "Adrenalina": 
https://www.youtube.com/watch?v=FIH7_pTd9f4

Se parte da energia do álbum anterior instigava a pro-atividade, esse Rasgacabeza pega mais pesado e é mais direto, ainda que se utilizando por diversas vezes da metáfora do fogo. Porque a realidade do ano passado para cá mudou. Da esperança da continuidade de um governo mais preocupado com a justiça social para um executivo destemperado e despreparado para um mundo que exige cada vez mais equilíbrio e sintonia com a igualdade, com uma cabeça mais aberta. Então “rasgue a cabeça” e mergulhe num estado de espírito que afaste de vez essa espécie de sonambulismo que parece ter contagiado a nação. Ou seja, é hora de “tocar gasolina na monotonia”, de acordar e incendiar em nós a alegria de viver, como sugere “Chama adrenalina: gasolina”, música que abre o álbum e dá o tom exato do que vai vir pela frente, com levada punk e a eletricidade típica de quando se une rock e eletrônica, com direito a faíscas para todos os lados.


Esse é um dos diferenciais do novo disco em relação ao de 2016. Francisco, el hombre se apropria um pouco mais da música eletrônica para cantar suas letras incendiárias e engajadas. “Chão, teto, parede: pegando fogo” é um mantra incendiário que toca fogo em tudo, chão, teto e parede, que chama para a pista num crescendo, que reúne pegada tecno e rock, que lembra o punk eletrônico de expoentes do gênero, como The Prodigy, A sequência é orgânica e abre espaço para a mesma mistura dançante da ótima “Travou: tela azul”, sobre a relação passiva do homem com a cidade grande, desse sentimento paralisante de não interagir com a metrópole, com a integração viva que ela exige: “Medo de cair da rotina, assim, sem amor aqui/Dá pra se iludir, da pra porra. Travou, morreu com muito sonho na cabeça”. Não se envergonhe de bater os pés no chão com a eletricidade da música, até de dançar no seu quarto de portas abertas. Deixe pegar fogo. Dance pra não dançar.

“Encaldeirando: aqui dentro tá quente”, outro dos pontos altos do disco, se entrega a uma mistura alucinada de ritmos, característico do grupo que tem dois mexicanos e três brasileiros de Campinas(SP), com toques de funk para esquentar ainda mais a relação já buliçosa entre disco e ouvinte. “Meu fogo não é palha, se espalha, te incendeia./Sou uma idéia que não queima, o estopim”, avisam em coro, para depois chamar à luta, reforçando o espírito combativo do trabalho: “Tá com medo do que? Dá a sua cara à tapa”. Esse espírito, essa sangria imperativamente desatada repete-se em outras canções afogueadas que usam de muitos ritmos para inspirar escaldantes reações nas pistas. A exemplo de “Manda bala: não preciso de você”, que se emprenha do rap e batidas percussivas para nos envolver, e “Se hoje tá assim: imagina o amanhã”, a mais descaradamente engajada do álbum: “Viatura dita o medo/na moldura, retrocedo/De Censura vive o medo/ Se hoje tá assim, imagino o amanhã”. Pra ouvir, pensar e, óbvio, como é a proposta renitente do grupo, dançar.


Nessa caudalosa correnteza sonora que nos arrasta há somente um remanso que nos permite respirar, o único momento calmo do disco, “O Tempo é sua morada: celebrar”. Aqui, Francisco, el hombre se esparrama em poesia e bela melodia que lembra, em sua construção marcante, a fantástica “Triste, Louca ou Má” do disco anterior. Rasgacabeza é mais uma bola dentro de Julian Strassacapa, Andrei Martinez, Sebastián Piracés-Ugarte, Mateo Piracés-Ugarte e Rafael Gomes, a reafirmação de uma banda boa praça e inquieta. Essa trupe retorna ainda mais afiada, mais coerente em seu projeto de marcar a vida das pessoas não somente com a pluralidade sonora, mas com um discurso que encha   e desperte o coração da gente. São agentes da alegria com a missão de nos conectar com nosso tempo e rasgar nossas cabeças para o futuro que virá. Arte com engajamento, sem discurso chato e com recursos de sobra pra nos deixar ainda mais vivos e conscientes. É mole ou quer mais?

Cotação: 4

Se link: https://mega.nz/#!FtdmgA4I!DKRDG6cH0oaqJ_esA6IB1GkCkI2GT97YPwNQLLVbgYI

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